segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

E elas só querem...

Pegava um ônibus lotado de segunda a sexta, subia uma escadaria enorme e se trancava no escritório da empresa. Entre as notas para emitir, os telefonemas para atender e os beeps da chefe pedindo urgência, ela arrumava tempo para cutucar as amigas na internet. Era magrinha, baixinha, engraçadinha, toda inha. Mas os olhos gigantes e incrivelmente escuros pareciam mostrar que dentro da estrutura pequena haviam coisas enormes querendo ser gritadas. E isso ela fazia muito bem. Porque tão largo quanto o sorriso era o repertório de palavras que conseguia emitir por segundo. 

Aos sábados saía para dançar num daqueles lugares que David Guetta mandaria benzer. Sem um pingo de paciência pro tuntz, tuntz, tuntz das boates, vestia uma sainha florida e cheia de babados com camisetinha branca, trançava o cabelo lisinho e ia marchando praquela casinha de shows em que dançava o forró universitário mais desengonçado que o mundo já havia assistido. Mas era linda sempre. Mesmo quando bebia e atirava copos de cerveja em quem passasse pela frente. “Sei lá o que me deu. Será que preciso ser exorcizada?”, questionava depois às amigas enquanto segurava uma gargalhada capaz de contagiar um soldado da guarda inglesa. E quando acabava a noite voltava pra casa lendo o livro do Gabito Nunes, vez ou outra olhando pela janela do táxi se questionando qual daqueles carinhas na rua a suportaria na TPM ou diria que mesmo amassada pela manhã ela continuava sendo a mulher dos sonhos dele.

Você existe, eu sei. 
Em algum lugar do mundo você vive ... 
Vive como eu onde eu ainda não fui ...
(Biquini Cavadão)


Quase nunca ela sorria. Sabe-se lá por que. Se perguntada, incorporava uma Maria Gadú afetada e cantava Lanterna dos Afogados para se explicar, segundos antes de rodopiar pista afora com qualquer música do Pussycat Dolls. “Mulher tem que ser eclética, minha filha. As poderosas são assim”, dizia empinando o nariz e citando um livrinho que tinha baixado pela internet. Gastar, só com o corpete pretinho e outras peças básicas que a deixavam ainda mais mulherão, além da mensalidade da academia. No mais, economizava pra fazer algo grande. “Quero ir pra Dubai. Sozinha”. E que ninguém se atrevesse a pedir pra ir junto. Era o tipo de garota que sabia de tudo: opinava sobre a embromação de Ronaldinho Gaúcho, as pernas da Ivete Sangalo, a banda inglesa nova, o corte de cabelo da amiga, as flutuações econômicas na indústria de charutos cubanos. Tudo isso enquanto arqueava uma sobrancelha e analisava as unhas. 

Decidida, não engolia sapos de ninguém e era capaz de calar o chefe caso viesse com papo torto pro lado dela. Só não era assim com quem amava e se transformava na pessoa mais doce e compreensiva que alguém podia conhecer. Dava colo, beijo, coração, alma e um pote de sorvete. “Posso ser amável se me derem chance”, cantava no chuveiro. À noite abraçava o travesseiro, rezava pelo bem daquele com quem sonhava e... não dormia. Tudo bem. Porque o telefone tava tocando. Era a amiga louca contando que havia dançado forró demais, bebido demais e atirado cerveja nos outros.

Se eu não posso ter
Fico imaginando...Eu fico imaginando
(Skank)


Tinha tatuagens pequeninas – mas queria fazer uma gigante –, uns poucos piercings espalhados, mania de escurecer o olho com sombra e usar blush. “Pra não ficar com cara de doente”, explicava. Quem a via batendo perna na rua em dia de calor num vestidinho florido e com a trança despenteada jurava ser ela uma moleca bem-resolvida. Mais ainda quando tomava cerveja pra parecer legal e ria solta até dessas piadas de pontinho. Gostava de se olhar no espelho à noite usando um pijaminha leve ou o conjuntinho atrevido que havia comprado. “Poxa, mas tú é gostosa, hein?”, dizia olhando a imagem refletida, fingindo não estar incomodada com um monte de detalhes. Então pulava no sofá e assistia TV com as pernas pro ar, feito criança. 

Passava horas lendo coisas chatas pra faculdade e às vezes saía. Bebia uma tal de Melancia Atômica, pirava um pouco e dançava funk, mesmo traumatizada porque não conseguia ir até o chão. Depois da festa caía na cama e se lembrava do gay que conheceu na fila do banheiro: “Homem não presta, meu bem. Abandonei aquela laia e virei bicha”, disse gargalhando meio bêbado, meio histérico demais ao perceber a própria ironia. Ela sorriu no canto da boca antes de apagar e pensou que prestando ou não queria ter alguém a tiracolo pra coretar o jeito que dançava, reclamar da lambança que fazia com o catchup e dizer que sentia sua falta. Alguém pra ligar de madrugada e dizer que amava, jogar Stopots e decorar manias. Alguém pra planejar uma viagem pra Dubai. Sem a amiga marrenta que queria ir sozinha.


... que seja bom pra mim...
Vou procurar... eu vou até o fim
(Frejat)


Ela perdia a noção do tempo ajeitando a franja e se divertia desviando-a do rosto. Na danceteria enorme preferia o scotch bar ao ambiente trance. Ainda assim, quem passasse por ela a encontraria suada dentro do vestidinho preto. Pose tipo o-mundo-vai-acabar-e-ela-só-quer-dançar. Mesmo que fosse uma versão em jazz da música do caminhão de gás. Mas quando se sentava e resmungava por dentro sobre o sapatinho que apertava os pés, sabia que queria mais. “Uma caipirinha, por favor!”. E voltava a dançar sobre o salto infernal, solta, leve, com a mesma desenvoltura que exibia andando de camiseta, jeans e All Star. Primeiro no corredor da faculdade. Depois entre as salas da agência. Adorava viajar, mesmo que fosse olhando pro teto no quarto. 

Cabia em qualquer roupa, mas não em qualquer canto, porque quando falava o espaço se enchia dela e pra ela. Tinha queda pelos caras que ninguém adivinhava, ligava o ventilador no inverno e curtia ganhar presentes inesperados, mesmo que comprados por ela mesma. “Tô me agradando, ué!”. Se entupia de chocolate e não engordava, adorava a família, tinha os pés pequenos e os sonhos grandes. Curtia abraço, a melhor amiga e conselhos sem sentido. “Seja tudo, faça tudo, experimente tudo. E oh, te cuida”, dizia àquela garota que fingia ser moleca bem-resolvida. Então saía correndo sem cobrar a sessão de terapia no boteco e dizia que qualquer reclamação, bastava falar com Freud. Pegava carona com algum companheiro de balada e tagarelava sobre tudo, sobre o mundo. Só não falava de si. “Ah, pra quê? Deixa eu guardar um pedacinho de mim”. Pedacinho que ela entregaria pra alguém mais tarde. Assim, do nada, sem planejar. Se esse alguém aparecesse e quisesse carregar.

20 comentários:

nay disse...

Liiiindo!

Juliana Souza disse...

Você me deixou na dúvida.Está ficando tão boa nisso que escreveu um texto que não consigo decifrar.Como gosto de entender tudo,fico lendo e relendo.Caramba,você me deixou sem pistas.Enquanto isso vou lendo e relendo,pois ficou ótimo e muito divertido.

Mari disse...

Elementar, caro Watson! =)

Renata disse...

Amiga, é 'Se eu não posso TER, eu fico imaginando'. O Nando te mata se ver que vc errou a música. rs.

Ameeei o texto. Pra variar.
E ele não é complexado.
=)

Andreza disse...

Nane, vc tem o mundão pela frente! Bons ventos sempre!
O texto ficou simplesmente perfeito! Sua leveza ao escrever foi sedutora. Seu olhar observador foi encantador.
E viva as Vacas...rs

Mari disse...

Já corrigi, Decs. Não conta pro Nando, please. E viva as Vacas entupidas de DJ, neh, Deza?

Fabinho disse...

Acertei todas! Rá!

Mari disse...

Aham, Fábio, senta lá. ¬¬

Naira disse...

O "Dom" de transformar em palavras tudo que observa, realmente, me intriga, me agrada, me diverte! Não tem outra palavra a não ser: Sensacional!!! Parabéns!

Mari disse...

Pô, Nairinha! o.O

Camila Chaves disse...

nem vo comentar... :<
feia
boba
chata
colorida!

bjuuuuuuuu!!

Mari disse...

Também te amo.

Bethania Vilela disse...

Mari, que isso ein!!! ficou muito bom! :)

"... se lembrava do gay que conheceu na fila do banheiro: “Homem não presta, meu bem..."
adorei!! lembro disso também ne!! kkkkkkkkk


beijão

adm disse...

Digamos que seria o quarteto "Arman"

Mari disse...

Haueuaueheah... lembra sim, Betha!!! E olha que censurei parte do que ele falou... aheaueuaeua... Que venham outras chances assim.
Quarteto "Arman"? Tô com medo de perguntar o que é, Adm... =)

Luana Gabriela disse...

Um lugar onde eu ainda não fui. PS: Tá gostando do livro do Gabito, quero ler tb!!

Venho agradecer seu carinho no blog Não Quero Falar disso,e informar que ele agora mudou de endereço,se você possui ele linkado é necessário atualizar para: www.marginaliasubversivas.blogspot.com

Bjos

Flávia Nunes disse...

Simplesmente fã à primeira leitura. Já espero pelas próximas...
Não posso deixar de ser clichê e dizer: parabéns!!!

Mari disse...

Que lindo, Flávia! Obrigada, flor!

Dani disse...

Ahh em um desses parágrafos eu tava presente ! haha .

Mari disse...

aheuaueaueua... Tava sim, botafoguense!

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