O copo vazio

Naquele dia eu olhei pro copo de Coca-Cola e concluí: ele estava metade vazio. Cheia era só minha cabeça. Aliás, cadê a porra da felicidade que a propaganda inútil de refrigerante promete dar? 

Enquanto o balconista da lanchonete me olhava com cara de quem não entendia meu autismo, decretei que aquela quarta-feira seria Dia Mundial do Pessimismo, mesmo que o mundo fosse reduzido a mim mesma. Sem feriado, sem lembrança no calendário, aquele seria o meu dia. Meu. Meu. Meu. Alguma coisa tinha que ser. Que fosse então aquela idéia retardada de separar um dia no ano pra algo que está em mim desde que nasci. Fato.

Acho mesmo que já fazia previsões horríveis na barriga da minha mãe e duvido que quis sair de lá. Sinceramente, eu devia ser aquele feto carrancudo que não tinha a menor vontade de descobrir se existia vida após o parto. Queria ficar ali. Mas nunca mandei na natureza e devo ter chorado horrores quando vi a tal luz e me contaram com um tapa no bumbum que a vida começava ali. Fosse eu um bebê que não tivesse nascido com a bacia deslocada (deve ter doído), faria um sinal muito feio pro médico.

Mas logo aprendi que protestar e fazer pirraça só me ajudavam a criar a casquinha do ser mal humorado, irritante e nervosinho escondendo uma manteiga derretida que não passa três episódios de Dexter sem chorar. Pois bem, considerando que ele esquarteja gente e joga os pedaços no Atlântico, se emocionar com isso deve ser meio estranho. Tá, não é com isso. Mas deixa eu fingir que não me importo com as dúvidas dele e uns sentimentos malucos que afloram num serial killer afetado. Me deixa disfarçar.

"There’s another world inside of me
That you may never see…”
(3 Doors Down)

Deixa eu fingir que não ligo e que to gargalhando feito vilã de novela mexicana pras bananas que a vida me dá. Deixa eu dar de ombros pras coisas que eu vejo e mexem comigo. Deixa eu interpretar uma atitude “foda-se”, dessas de estampar camisetas. Rebeldia comprada em boutique. Sabe como?

Deixa eu ajeitar meus óculos fingindo um cacoete quando na verdade quero esconder dois olhos cansados e com vontade de fechar. Deixa eu sorrir torto parecendo a timidez em forma de gente, quando o que escondo é mesmo a vontade de não rir. Má vontade de mostrar os dentes.

Deixa eu olhar pro nada como se visse tudo e fosse apenas uma esquisitinha que entra em transe, sai do corpo sem notar. Deixa eu me sentar sozinha no ônibus, ouvindo a mesma musiquinha do cara-que-vaga-por-aí-menosprezando-tudo-o-que-vê. Deixa eu fingir que precisar de alguém é coisa do compositor sentimental que encaixou a frase ali no refrão e que acho brega essas frases de efeito. Deixa eu fazer careta de quem tá pouco se lixando pro mundo e pra tudo.

E de repente nada mais faz sentido. Nada mais pesa aqui dentro. Sou mais vazia que o copo de Coca-Cola que deixei no balcão.

Pode ser maturidade. Pode ser a minha única opção. Pode ser cansaço. Pode ser transformação. Talvez eu tenha interpretado bem, me convencido de que sou realmente assim. Te cuida, Sandra Bullock! Vão dar o Oscar pra mim.